Tuesday, March 6, 2007

Além do Desejo (Soap en-2006)



Data: 04 de Março de 2007
Por: Diego Benevides

Destaque em festivais importantes como o de Berlim e da Transilvânia, “Além do Desejo” traz uma situação bastante exótica que envolve não somente a questão do transexualismo, mas também de como as pessoas podem mudar o destino de nossas vidas a partir do momento que entram nela.
Charlotte (Trine Dyrholm) é a típica mulher que não vive um relacionamento feliz. Abalada emocionalmente pelo fracasso de seu último envolvimento, a moça procura o primeiro
apartamento para lugar e se distanciar um pouco da vida que levava antes. O que ela não esperava é que no andar de baixo morasse Verônica (David Dencik), uma transexual que espera uma autorização para fazer a operação de mudança de sexo para poder se tornar verdadeiramente uma mulher, já que sofre com seu corpo que rejeita os hormônios femininos que toma. As duas passam a viver uma relação de vizinhança bastante comum, mas seus dilemas cotidianos e vidas pessoais começam a ter a interferência uma da outra, e um desejo inexplicável passa a tomar conta delas, que não sabem como viver isso. É bastante interessante pensar que paixões proibidas e avassaladoras, ou transexualismo e relações fracassadas não são mais novidades no cinema, mas a forma com que é trabalhada acaba dando um gostinho de originalidade. Homem se apaixonando por homem, ou mulher por mulher, tudo isso já foi visto, e por que não uma mulher e um transexual à beira de uma cirurgia de troca de sexo viver uma paixão avassaladora que nem eles mesmos podiam explicar? Particularmente fiquei curioso com o enredo e com a forma que ele poderia se desenvolver. Mesmo não superando minhas expectativas, o longa demonstra certa maturidade em diversos sentidos. A primeira mais notável é que a construção da personalidade dos personagens não ficou caricata, por mais que eles sejam estereótipos (mas hoje em dia qual filme não segue estereótipos para montar sua história?). Charlotte é uma fuga ambulante. Desencantada com os homens, passa a fazer programas para matar sua carência e dar um novo “sentido” a sua vida, mas o que não espera é que tais trabalhos noturnos a apresentam a homens aparentemente dignos, confundindo mais ainda sua cabeça pelo fato de não ter tido na sua vida normal um homem que fosse daquele jeito. Verônica é a típica transexual solitária que divide seu apartamento com uma cachorrinha e é sempre visitada pela mãe, que mesmo demonstrando todo seu amor, ainda assim não aceita a condição de troca de sexo do filho. Para seu sustento, Verônica também sai com homens, mas é notável que não há o mínimo prazer nisso. Como ela mesmo diz “roupas e maquiagens são caras” e por isso tinha que “costurar e consertar zípers” para se manter. O filme parece ser tão simples, mas se formos parar para analisar o enigma amoroso que envolve as duas, podemos perceber um intimismo muito mais forte. O problema é que “Além do Desejo” é passível de várias leituras e certamente muitas delas não conseguirão entender o objetivo do longa, julgando-o como desnecessário ou tolo. O que é preciso pensar sobre a relação de Charlotte e Verônica a priore é que além do encanto que surgiu desde a primeira porta aberta por elas, é que elas reforçaram o refúgio uma da outra. É bastante perceptível que suas vidas tinham muito em comum, principalmente relacionado a seus destinos. O paralelismo de suas vidas a atraiam para não se sentirem sós ou distantes de si mesmas. O absurdo que seria uma paixão entre elas, acaba sendo uma hipótese difícil de conter e explicar, coisa que o roteiro também demonstra, já que procurar explicações secas sobre tal paixão seria totalmente desnecessário. E é nisso que o roteiro de Kim Fupz Aakeson e Pernille Fischer Christensen (também diretora) pretende focar, sendo totalmente realista se trazido para nossa vida. Quem nunca se apaixonou e não soube explicar o por quê disso? Amor é um sentimento que realmente quanto mais tentamos explicar, mais continuamos no lugar comum ou em um diálogo vago e redundante. Outro fato que podemos tirar da relação das vizinhas é que de alguma forma a atração ocorreu entre elas porque elas almejavam ter a vida da outra. Podemos subjetivar em alguns momentos que Verônica admirava Charlotte por ela ser uma verdadeira mulher, por já ter tido um relacionamento, por ser mais aceita na sociedade e por ter uma beleza feminina que uma troca de sexo não iria proporcionar. Talvez o amor de Verônica tenha transcendido isso, mas é fato que ela tinha em Charlotte um carinho inexplicável, mais presente, que dava para dispersar a solidão e ter alguém para comer uma pizza ou assistir sua novela preferida. Já Charlotte via em Verônica talvez uma vida mais simples, mas que se identificava por saber que ela não era a única a estar no fundo do poço. Em um determinado momento, quando Charlotte não tem com Verônica uma noite de sexo, ela chama seu ex-companheiro para suprir essa necessidade e sentir-se desejada. Mas tudo o que ela queria mesmo é que ali fosse Verônica, independente de sua condição. E como explicar esse laço forte que foi criado? Não se explica. Somente percebemos que suas vidas que aparentemente estavam deterioradas devido a seus passados clementes, começavam a ser alteradas e a encontrar uma razão nova para acreditar em muitas coisas já desacreditadas por ambas. Elas vão encontrando motivos para se sentirem vivas e o amor vai brotando sem perceber. Quando elas declaram que precisam uma da outra, esse verbo “precisar” fica em aberto, e mesmo entre beijos e carícias, ficamos nos questionamos em quê elas se precisavam e o roteiro nos dá essa liberdade, já que termina em aberto e permite que nós mesmos construamos o final das duas. A estreante Pernille Fischer Christensen recebeu grandes elogios pela sua condução em “Além do Desejo”. Com um estilo diferente do que estamos acostumados, particularmente um pouco da estrutura do seu longa me remeteu ao maravilhoso “Dogville”, de Lars Von Trier. A começar pela divisão da história como se fossem os capítulos em que “Dogville” é dividido. A cada capítulo, um narrador bastante irônico e regido a uma trilha sonora também semelhante a película de Von Trier, aparece para ajudar a modelar os sentimentos das personagens e a prever algumas coisas que podem acontecer, enquanto imagens paradas e sem cor vão ilustrando a narração. Outra semelhança também é o trabalho que Christensen faz com a câmera e com a iluminação. Optando por planos registrados com câmera na mão, parece que ela está sempre em função das reações e sentimentos dos personagens e com a ajuda do zoom e dos movimentos irregulares vão dando mais intensidade a trama. Neste quesito, a filmagem toma uma caráter mais passivo ao intimismo do elenco, muitas vezes exigindo uma reação ou registrando um plano confuso que não tem tanto significado na trama. Já a iluminação (ou a falta dela) sempre preserva o ambiente em que as cenas foram rodadas, muitas vezes não valorizando alguns elementos, mas sendo importantes na construção do realismo obscuro da solidão das vizinhas. Mesmo não tendo usado recursos inovadores, Christensen não fez feio e conduziu com responsabilidade. Misterioso, um pouco metódico e bastante subjetivo, “Além do Desejo” mostra como o amor pode se manifestar de diferentes formas e dá possibilidades para que possamos criar teorias e nos envolver com o relacionamento de Charlotte e Verônica. É impossível não se sensibilizar, ou se irritar com os acontecimentos ruins ou até se envolver com aquele romance atípico, já que várias das situações que elas vivem são familiares a muitos de nós. Mesmo não sendo um filme que feche seu roteiro, já que deixa muitos acontecimentos pendentes como a relação familiar de Verônica, e não se instale na história do cinema contemporâneo, é interessante ter um exemplo de como clichês podem ser contornados principalmente devido ao olhar de uma cineasta estreante, porém capaz de criar universos particularmente admiráveis. Mostrar o amor em um filme está sendo cada vez mais fácil, mas quando percebemos uma mostra verdadeiramente decente, vemos que o trabalho foi bastante rígido. Excluir o dramatismo e as caricaturas muitas vezes valem a perna do roteirista, mas acabam funcionando muito mais do que outras produções medíocres.

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