MUDANÇA Andreia, João antes da mudança do nome, fez implantes mamários, mudou nariz, olhos, boca. Prostituiu-se para pagar as operações
Começo pela questão da orientação sexual, ou seja, do sentido do desejo. Lara e Andreia são heterossexuais, Eduarda é lésbica e Stéphane é gay. Interessa, a orientação sexual? No contexto do diagnóstico clínico, não. Em termos psico-sociológicos, sim. A si, que está a ler este texto, interessa-lhe seguramente. No final da leitura, se aceitar como sendo verdadeiro o sentido do desejo de cada um destes transexuais, tê-los-á também aceite com as identidades de género que reclamam.
Enquanto estive a fazer esta reportagem, dei por mim a ver coisas estranhíssimas, como por exemplo fotografias de um homem num corpo de mulher a amamentar, e, logo depois e ao vivo, o torso nu desse homem, já depois da mastectomia. Esta imagem perturbou-me - porque já fui mãe, mas também porque sou uma mulher biológica, inevitavelmente ensombrada, não por um homem, mas (habitando o lugar da cultura a que pertenço, heterossexual e católica), por um preconceito fortíssimo.
Por isso começo pelo meu próprio preconceito: o que determina que tenha começado por achar que ter o período, ficar grávida e ter filhos é ser mais mulher do que ser sempre muito feminina. Começo portanto por estar convencida de que, se havia ali alguma mulher, essa mulher era eu - que gerei um filho e que estava nesse dia com o período e com dores de barriga.
Começo pela questão da orientação sexual, ou seja, do sentido do desejo. Lara e Andreia são heterossexuais, Eduarda é lésbica e Stéphane é gay. Interessa, a orientação sexual? No contexto do diagnóstico clínico, não. Em termos psico-sociológicos, sim. A si, que está a ler este texto, interessa-lhe seguramente. No final da leitura, se aceitar como sendo verdadeiro o sentido do desejo de cada um destes transexuais, tê-los-á também aceite com as identidades de género que reclamam.
Enquanto estive a fazer esta reportagem, dei por mim a ver coisas estranhíssimas, como por exemplo fotografias de um homem num corpo de mulher a amamentar, e, logo depois e ao vivo, o torso nu desse homem, já depois da mastectomia. Esta imagem perturbou-me - porque já fui mãe, mas também porque sou uma mulher biológica, inevitavelmente ensombrada, não por um homem, mas (habitando o lugar da cultura a que pertenço, heterossexual e católica), por um preconceito fortíssimo.
Por isso começo pelo meu próprio preconceito: o que determina que tenha começado por achar que ter o período, ficar grávida e ter filhos é ser mais mulher do que ser sempre muito feminina. Começo portanto por estar convencida de que, se havia ali alguma mulher, essa mulher era eu - que gerei um filho e que estava nesse dia com o período e com dores de barriga.
É certo que as mãos são maiores, que a mulher é bastante alta para uma portuguesa (há um estranho que passa e que solta um desrespeitador «que mulherão!»). Certo também que identifico mais alguns sinais masculinos, que são só coisas do corpo, e que não são daquela mulher - antes do homem que ela diz que nunca foi, homem contrariado, homem à força, pela força do corpo.
Mas é uma mulher que me fala. Tem as unhas pintadas, veste um top que comprou no dia anterior, fala-me de coisas fúteis de mulher, mas também do que significa ser homem ou ser mulher. «As transexuais femininas para os médicos são transexuais masculinos são diariamente confundidas com as prostitutas, com os travestis, com os gays vestidos de mulher. Os homens que compram sexo adoram as transexuais . A maior subversão, e a maior perversão também, é ter uma mulher a penetrá-los. E para isso, as prostitutas precisam de ter os seus pénis.» É como se a cirurgia de redesignação fosse feita para os homens, como se se destinasse a acalmar os ânimos da sua masculinidade ferida. «As mulheres são mais compreensivas, têm um olhar mais sensível, aceitam que nos sintamos mulheres, cumprimentam-nos com dois beijos na cara. Com os homens, o facto de termos ainda um pénis inibe-os de nos considerarem como pertencendo ao outro sexo. Os homens ficam incomodados, não sabem como cumprimentar-nos, e têm sobretudo medo de serem vistos a dar-nos beijos - porque podem ser tomados por homossexuais.»
Quando os médicos dizem «transexual masculino», estão implicitamente a reconhecer «que, mesmo após as operações e as várias intervenções estéticas, há sempre algo que pode denunciar, fisicamente, o corpo anterior». Entende-se por transexualidade, segundo a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças, «o desejo de viver e ser aceite como membro do sexo oposto, habitualmente acompanhado por um sentimento de desconforto e de estranheza em relação ao seu sexo anatómico, e a um desejo de ser submetido a um tratamento hormonal e cirúrgico que torne o corpo o mais congruente possível com o do sexo preferido.
Mas é uma mulher que me fala. Tem as unhas pintadas, veste um top que comprou no dia anterior, fala-me de coisas fúteis de mulher, mas também do que significa ser homem ou ser mulher. «As transexuais femininas para os médicos são transexuais masculinos são diariamente confundidas com as prostitutas, com os travestis, com os gays vestidos de mulher. Os homens que compram sexo adoram as transexuais . A maior subversão, e a maior perversão também, é ter uma mulher a penetrá-los. E para isso, as prostitutas precisam de ter os seus pénis.» É como se a cirurgia de redesignação fosse feita para os homens, como se se destinasse a acalmar os ânimos da sua masculinidade ferida. «As mulheres são mais compreensivas, têm um olhar mais sensível, aceitam que nos sintamos mulheres, cumprimentam-nos com dois beijos na cara. Com os homens, o facto de termos ainda um pénis inibe-os de nos considerarem como pertencendo ao outro sexo. Os homens ficam incomodados, não sabem como cumprimentar-nos, e têm sobretudo medo de serem vistos a dar-nos beijos - porque podem ser tomados por homossexuais.»
Quando os médicos dizem «transexual masculino», estão implicitamente a reconhecer «que, mesmo após as operações e as várias intervenções estéticas, há sempre algo que pode denunciar, fisicamente, o corpo anterior». Entende-se por transexualidade, segundo a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças, «o desejo de viver e ser aceite como membro do sexo oposto, habitualmente acompanhado por um sentimento de desconforto e de estranheza em relação ao seu sexo anatómico, e a um desejo de ser submetido a um tratamento hormonal e cirúrgico que torne o corpo o mais congruente possível com o do sexo preferido.
Há seis anos a lutar pelo reconhecimento da sua identidade de género (que a Constituição portuguesa ainda nega), Lara lembra que, se vivesse em Espanha, teria já o nome escolhido por si no BI. Porque já concluiu a maior parte do processo clínico, porque prossegue o tratamento hormonal, e, sobretudo, porque vive como uma mulher há mais de dois anos. Mas, se Lara vivesse na Catalunha, convém que saiba que o Hospital Público de Barcelona providencia apoio psicológico e endocrinológico, mas não a cirurgia. Por isso, também, há quem considere o serviço público português imbatível em termos de acesso e custos.
Em Portugal, a mudança legal de sexo é possível desde 1984 (em Inglaterra, até há pouco tempo, o BI era inalterável). Mas o flagelo da prostituição entre os transexuais revela um quadro negro de políticas de género. A prová-lo estão os números que nos advogados contabilizam mais solicitações por parte de transexuais femininos (f-m, do inglês «female-to-male», feminino-masculino). E os oficiais, produzidos pelos serviços do Ministério da Saúde a partir das consultas da rede pública hospitalar, que somam mais f-m do que m-f. Isto apesar do número real de transexuais m-f ser indiscutivelmente maior. Incongruências estatísticas que apenas reforçam a natureza clandestina e aparentemente intocável da prostituição. 93% dos transexuais m-f portugueses (ou a viver em Portugal) prostituem-se.
Lara, 35 anos, desempregada, diz-me que era complicado trabalhar como jornalista, apresentando uma carteira profissional onde constava o nome Lara Crespo, em nada condizente com o do BI, onde pode ler-se José Carlos Crespo. Era complicado para quem? Para os empregadores, para a contabilidade, para os outros jornalistas? Lara pode alterar o nome próprio antes de concluir o processo clínico que desembocará numa vaginoplastia. Mas não para o nome que escolheu, antes para um dos que constam da lista oficial de nomes próprios ditos neutros aceites pelos serviços de identificação. Eduarda Santos, 48 anos, teve enquanto homem um casamento tradicional. Conheceu a ex-mulher quando na tropa, ainda Eduardo, começou a corresponder-se com ela. Dessa união resultou uma filha, hoje com 24 anos. «Acredito que seja complicado para a minha filha chegar ao pé dos amigos e dizer que afinal o pai é uma mulher... Eu não me identificava com o universo masculino, e para não sofrer represálias, construí um 'muro' à minha volta.» Atrás do muro existia uma mulher, que não se interessava por futebol nem por carros. Eduarda começou há quatro anos a fazer o tratamento hormonal que transforma homens em mulheres. «Os pêlos diminuíram, sobretudo nas pernas, mas no rosto não resulta. Esta medicação retira a erecção e a ejaculação - é aliás usada como castrador químico para os pedófilos. De resto, a pele e o cabelo ficam mais macios, as formas mais arredondadas, o peito cresce.»
A mãe não lhe fala. Para ela, o filho é um travesti. O filho-filha diz que isso lhe dói, e que não é pouco. Mas há mais marés, e outras batalhas pela frente, como por exemplo a do trabalho. «Fui ajudante de despachante, mas acabaram as alfândegas e fiquei desempregada. Fui para segurança, mas a firma fechou, e eu fiquei desempregada outra vez. Estou à procura de trabalho, mas isto é como ter lepra e estar escrito na testa.»
CIRURGIA
Lara, 35 anos, desempregada, diz-me que era complicado trabalhar como jornalista, apresentando uma carteira profissional onde constava o nome Lara Crespo, em nada condizente com o do BI, onde pode ler-se José Carlos Crespo. Era complicado para quem? Para os empregadores, para a contabilidade, para os outros jornalistas? Lara pode alterar o nome próprio antes de concluir o processo clínico que desembocará numa vaginoplastia. Mas não para o nome que escolheu, antes para um dos que constam da lista oficial de nomes próprios ditos neutros aceites pelos serviços de identificação. Eduarda Santos, 48 anos, teve enquanto homem um casamento tradicional. Conheceu a ex-mulher quando na tropa, ainda Eduardo, começou a corresponder-se com ela. Dessa união resultou uma filha, hoje com 24 anos. «Acredito que seja complicado para a minha filha chegar ao pé dos amigos e dizer que afinal o pai é uma mulher... Eu não me identificava com o universo masculino, e para não sofrer represálias, construí um 'muro' à minha volta.» Atrás do muro existia uma mulher, que não se interessava por futebol nem por carros. Eduarda começou há quatro anos a fazer o tratamento hormonal que transforma homens em mulheres. «Os pêlos diminuíram, sobretudo nas pernas, mas no rosto não resulta. Esta medicação retira a erecção e a ejaculação - é aliás usada como castrador químico para os pedófilos. De resto, a pele e o cabelo ficam mais macios, as formas mais arredondadas, o peito cresce.»
A mãe não lhe fala. Para ela, o filho é um travesti. O filho-filha diz que isso lhe dói, e que não é pouco. Mas há mais marés, e outras batalhas pela frente, como por exemplo a do trabalho. «Fui ajudante de despachante, mas acabaram as alfândegas e fiquei desempregada. Fui para segurança, mas a firma fechou, e eu fiquei desempregada outra vez. Estou à procura de trabalho, mas isto é como ter lepra e estar escrito na testa.»
CIRURGIA
Stéphane vive com um filho adolescente. Foi aos Estados Unidos fazer uma mastectomia
Stéphane também foi casado durante mais de 20 anos. Não compreendendo o que se passava consigo, viveu anos com medo de pedir ajuda psiquiátrica, por receio que o obrigassem a ser uma mulher. Mas chegou o dia em que revelou ao marido a sua verdadeira condição. «Expliquei tudo ao meu homem, e ele aceitou. Já o facto de eu ser homossexual, foi mais difícil de aceitar para ele, porque o remeteu para a sua própria orientação sexual.»
Nascido na Bélgica em 1956, Stéphane vive em Braga há cerca de 10 anos. «O que determina que sejamos homem ou mulher não está no sexo anatómico.» Mas, para os outros, como por exemplo para os vizinhos que em Braga vão ao domingo ao Bom Jesus, é o corpo visível que predomina - e determina. «Os meus vizinhos passaram do ela ao ele, aparentemente sem problemas, mas quando um dia me viram com o meu marido, perguntaram-nos onde estavam as nossas mulheres! (Risos) Não me reconheciam, embora me vissem todos os dias! Depois de me assumir, continuei a fazer a minha vida normal, a ir às compras, etc. De um dia para o outro, apercebi-me de que algumas pessoas deixaram de me reconhecer. Quando o meu homem morreu, houve pessoas que foram ao enterro e que me perguntaram onde é que eu (a viúva) estava!»
Stéphane vive com o filho de 17 anos. Quando a mãe lhe disse que era um homem, o filho «ficou em estado de choque durante uns dias», e depois disse-lhe que «queria apenas saber se o amor por ele ficava inalterado.» Stéphane tomou a sua primeira injecção de testosterona há pouco mais de um ano, e fez logo depois a mastectomia, paga por si, nos Estados Unidos. Sobre a mudança legal, explica que na Bélgica «a lei determina que tenhamos de ser esterilizados para poder mudar os papéis. Em Espanha basta ter pedido a operação. A coisa muda de país para país, é uma grande confusão em termos legais»
Andreia nasceu João Carlos, em Évora, há 47 anos. A decisão de mudar legalmente de nome (embora restringindo-se à lista de nomes próprios neutros aceites em Portugal) alterou (e muito) o seu quotidiano. «O nome resolvido é uma grande coisa. Já não me sujeito àquelas situações que acontecem nos bancos, ou nas urgências hospitalares, em que chamam o João Carlos e apareço eu, uma mulher. Em 2001 alterei o nome para Andreia, aceite pelos serviços de identificação. Antes, aconteciam-me situações incríveis. Um dia fiquei retida quatro horas no aeroporto, e tive de me despir integralmente para eles verem que era mesmo eu. A carta de condução também foi um problema, a Direcção-Geral de Viação obrigou-me a voltar a fazer exame.»
Quando chegou às consultas, Andreia já tinha feito implantes mamários, mudado o nariz, a boca, os olhos. «Tudo com os meus meios. Tive uma vida difícil, prostituí-me para poder fazer as operações. Agora tenho uma vida estável, organizada e tranquila.» Ainda assim, por vezes, parece-lhe que se olha para os transexuais como pessoas que querem fazer valer um capricho, ou que têm perversões sexuais incompreensíveis. Diz que é urgente mudar estas crenças. Levando uma vida discreta, preferiu que não mostrássemos o seu rosto. Vive numa pequena comunidade no Grande Porto e acha que é melhor preservar-se. «Não quero problemas. Há uns anos fui à televisão e depois tive imensos problemas, nomeadamente com os vizinhos. Tive de mudar de casa. Onde vivo agora ninguém sabe a minha história - e ninguém tem de saber. As pessoas não aceitam porque não compreendem.»
Reportagem de Sarah Adamopoulos (texto) e Pedro Azevedo (fotografias)
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