Numa altura em que em vários países, as pessoas transgénero começam a conquistar algum reconhecimento legal da sua existência e dos seus direitos, mas em que a medicalização do tema, reduzido a doença pelos médicos e, concomitantemente, a "erro da natureza" pela própria maioria de trans (sejam transexuais, transgénero, travestis, ou outr@s), o movimento T começa a deixar transparecer, em alguns países, uma séria clivagem - geracional mas sobretudo ideológica e estratégica - entre duas correntes distintas: uma, que, aceitando o 'status quo' estatal e médico de que as identidades de género não conformes à sociedade do binarismo absoluto M/F são uma "disforia de género", e portanto uma questão essencialmente médica; outra, assumida sobretudo por jovens trans, que recusa esse 'status quo' e o poder dos psiquiatras sobre as suas vidas, recusando a classificação de doença, afirmando essas identidades de género como parte natural da diversidade humana ("disforia não, euforia de género!"), recusando o reducionismo médico (e da recente Lei espanhola), que reduz todas as realidades trans à transexualidade e só reconhece a transexualidade (@s trangénero em Espanha, para acederem aos tais direitos consagrados têm que obter um diagnóstico de transexualidade, mesmo que não o sejam), e defendem assim o reconhecimento da diversidade das próprias realidades trans ("sou trans e não me quero operar", por exemplo).
A clivagem é gigantesca e a questão não é para menos. Veja-se que as recentes medidas concretas aprovadas recentemente em Espanha, embora positivas porque alteram a vida concreta das pessoas e facilitam-lhes o viver no género escolhido com menor peso da discriminação e do estigma, se baseiam, porém, na ideia de que se trata de uma doença, e que é nessa base que estas pessoas vêem reconhecido o seu direito à protecção estatal, ou a que processos como o da mudança de nome sem obrigatoriedade de se ser operado/a sejam facilitados.
Veja-se, por outro lado, que o sistema médico - com excepção para uma minoria de profissionais mais evoluídos sobre a questão, incluíndo psiquiatras e psicólogos, que foram mais longe, compreenderam as reivindicações da própria comunidade trans e estão a ter novas práticas, mais desempoeiradas - não tem apenas vistas curtas, mas continua sobretudo a ser de enorme violência, ao encaixar à força as pessoas que o procuram na pequenez das suas próprias definições de "transexual" em vez de lhes dar espaço para se auto-definirem ou ainda, exemplo mais evidente, quando exige aos transexuais masculinos a sua esterilização - pois claro, que gajos com possibilidade de engravidarem, isso dava cabo do sacrossanto binarismo!
Pessoalmente, parti para este debate acreditando que a luta mais urgente nesta área da identidade de género e do combate ao binarismo de género - que argumentarei ser um combate necessário e comum a tod@s @s que lutam pela liberdade sexual e contra a discriminação sexual, e não apenas um combate trans com que o universo "lgb" deva ser "solidário" - deve incluir não apenas os direitos concretos conquistados em Espanha (e mais ainda), mas também e sobretudo combater a psiquiatrização forçada a que é sujeita maioria d@s trans.
Esta é uma questão que tem provocado uma discussão intensa e muito útil nas listas associativas e entre as próprias Panteras Rosa. As notas que se seguem, da minha autoria, são, no entanto, resultantes desse debate, com malta trans, com malta não-trans, como malta indefinida mas interessada, pouco importa. O que importa é alargar este mesmo debate, porque ele é central. Creio que o movimento trans vive hoje uma clivagem apenas comparada à dos movimentos homossexuais norte-americanos pré-Stonewall dos anos 50, que reivindicavam direitos e o fim da repressão com base no facto de estarem classificados como "doentes" - "recordam-se da classificação de "disfunção da função heterossexual que em Portugal só desapareceu em 2000?" - e ficaram de calças na mão quando a homossexualidade foi retirada dessa mesma lista de doenças pela American Psichiatry Association, mas entretanto já tinham sido ultrapassados pela revolta de Stonewall, que dava corpo a um novo movimento, mais radicalizado e nada disposto a aceitar a medicalização das suas identidades. Porque resulta de um debate, muitas destas notas surgem em forma de pergunta-resposta. As perguntas ou argumentos alheios surgem a bold, seguidas da minha opinião pessoal:
1 - Pré-questão lateral (que originou o debate): "É fundamental distinguir travestis de transexuais, pelo que devemos usar uma sigla com LGBTT".
Sim e não. Convém distinguir "travestismo" de "transexualidade", de "intersexualidade", de "trangenderismo", e etc, por uma questão de clarificação de conceitos. No entanto, e sem prejuízo de quem queira concentrar-se em trabalhar exclusivamente para parte destas realidades, julgo que a luta de todos estes grupos - e até da população lgb - contra o binarismo de género que nos impõe a falsidade da existência exclusiva de homens e de mulheres, é uma só, e que a opressão que sofremos em função deste falso binarismo é o nosso adversário comum, e justifica não apenas siglas como LGBTI (já usadas em alguns países), como o facto de realidades tão distintas se juntarem num mesmo movimento social.
Isto é válido, seja esse estigma traduzido em:
- homofobia (por sermos vistos como desviados face aos referentes sociais, aos papéis de género, de masculinidade e feminilidade);
- transfobia ou ainda negação da intersexualidade, porque a população trans (seja travesti, transexual, trangénera ou outra) e intersexual desafia o binarismo e comprova a sua falsidade ao demonstrar uma rica variedade de identidades de género e até de realidades biológicas que não cabem numa definição exacta de homem ou mulher;
- sexismo (porque aos referentes absolutos de macho e fêmea correspondem atributos de género e relações de poder socialmente construídas).
- machismo, que contraditoriamente é uma opressão que recai sobre tod@s, inclusivamente os seus supostos agentes, os Homens.
homofobia ou transfobia internalizada - veja-se como a própria "cultura gay", sobretudo a parte dela que já não é construída pelo movimento social mas pelo consumo - trabalha hoje os conceitos de masculinidade e discrimina a "bichice" e o "efeminado" sem se dar conta de que rejeita a própria liberdade de sermos quem somos ou como queremos ser, fora das imposições masculino (posição de poder e necessariamente hetero)/ femino (posição de submissão e necessariamente hetero) que estão na origem do sexismo e do patriarcado e, porque continuam a estruturar realidade social e mentalidade, na origem da própria discriminação da homossexualidade.
Voltando aos T's: considero útil distinguir conceitos, mas não considero útil que se separem e parcelem lutas que têm por inimigo comum o binarismo de género e as relações de poder que lhe estão associadas, porque esse sistema binário de géneros é a fonte comum da opressão de género que recai sobre todos estes grupos, e até é parcialmente fonte da lesbigayfobia, logo, deve ser o alvo comum de todas estas diferentes lutas de emancipação. Da mesma forma que não me envergonha se me chamarem trans ou travesti - pelo contrário, assumo solidariamente todas as identidades marginais que me queiram atribuir, mesmo que não sejam realmente aquelas que me traduzem - não creio que o universo trans deva , mesmo que lute pelo esclarecimento dos conceitos e das identidades diversas (que, por serem diversas, merecem ser nomeadas per se), dividir-se em lutas separadas ou sequer fazer questão de parcelamento da silga "T". Sobretudo porque vivemos uma realidade de grande discriminação interna entre "transexuais", "transgénero" e travestis, com que não devemos pactuar. Para lá do esclarecimento de conceitos, não compreendo nem aceito a necessidade de tant@s "T" se distinguirem de outros "T's", e soa-me àqueles bairros sociais típicos de Lisboa em que portugueses, ciganos e africanos se odeiam mutuamente e se separam, apesar de estarem todos no mesmo barco.
2 - Incomodam-me os discursos associativos - trans ou não - que mimetizam o discurso médico ao assumir falar de "disforia de género".
"Disforia" é um termo médico que foi utilizado neste século para psiquiatrizar a transexualidade e, com ela, as restantes realidades trans. As identidades de género que escapam à norma binária M/F - e mais ainda algumas realidades biológicas intersexuais, ainda muito pouco estudadas, que escapam à caracterização médica de macho e de fêmea - não são nem uma doença nem uma disforia, e está na altura de o afirmar e de deixarmos de pactuar com este discurso.
Doente é a sociedade que não sabe lidar com estas diferenças sem as categorizar como doenças e entregar a vida das pessoas nas mãos de médicos que as irão tratar como doentes mentais. A OMS prepara-se para, num curto espaço de tempo, retirar a transexualidade da lista de doenças, e no entanto, tal como aconteceu com a homossexualidade há mais de 20 anos, vemos ainda activistas trans a serem os primeiros a assumir o discurso da doença e da disforia, e até vemos a aprovação legal de direitos para as pessoas transexuais - como recentemente em Espanha - feito na base do pressuposto da doença, ou seja, de reconhecer direitos a "coitadinhos".
Basta! É inadmissível que a luta se faça na base dos coitadinhos doentes, tal como há 20 anos ainda havia organizações homossexuais a exigir direitos com base na classificação da "disforia" que lhes era atribuída. As identidades sexuais e de género marginalizadas nestas sociedade não são doenças. Para mim são - isso sim - o germen da subversão e transformação de uma sociedade binária que só vê homem/mulher tanto em termos de sexualidade como de género (sim, também importa, provavelmente até importa muito mais, distinguir os conceitos de "identidade de género" e de "papéis de género"), e que é incapaz de reconhecer a realidade e a natureza da própria diversidade da espécie humana. Esta é a nossa opressão e a nossa luta, sejamos l, g, b, t, t, t, t, t, t, i, q, mulheres, homens ou qualquer outra coisa que não caiba nesta mentira absoluta da exclusividade do H (de hetero) e do M/F (de macho-fêmea).
3 - Enviam-me algumas definições de Disforia... (obrigado, Rita): "Disforia é uma mudança repentina e transitória do estado de ânimo, tais como sentimentos de tristeza , pena, angústia. É um mal estar psíquico acompanhado por sentimentos depressivos, tristeza, melancolia e pessimismo. http://pt.wikipedia.org/wiki/Disforia dysphoria Excessive pain, anguish, agitation) disquiet, restlessness, malaise. (18 Nov 1997) http://cancerweb.ncl.ac.uk/cgi-bin/omd?dysphoria Gender dysphoriaIntroductionA person with gender dysphoria experiences anxiety, uncertainty or persistently uncomfortable feelings about their birth gender. They feel that they have a gender identity that is different from their anatomical sex. This may lead to a fear of expressing their feelings and a fear of rejection, which may lead to deep anxiety, leading to chronic depression and possibly attempted suicide.(...)http://www.nhsdirect.nhs.uk/articles/article.aspx?articleId=435"
O.K., o.k., parole. Eu acredito que a origem da necessidade de adequação do corpo para resulta, provavelmente, na maioria das realidades transexuais ou próximas em que as pessoas têm essa pulsão, da pressão social que valoriza como valoriza o binarismo de géneros e as diferenças entre géneros. Acredito que numa sociedade sem binarismo de géneros e opressão degénero, a transsexualidade seria vivida de outra forma. Essa seria uma longa discussão teórica.
Mas insisto na comparação entre a "disforia homossexual" de há 20 anos, e a "disforia de género", por todos os motivos. O mal estar das pessoas transexuais com o seu corpo resulta, acredito eu, do condicionamento social quanto às construções do masculino e do feminino. É evidente que muit@s trans - tal como outras pessoas, necessitam de apoio psicológico, mas este é o único caso em que ele obrigatório, e para todo um grupo social (até mesmo uma pessoa trans já inteiramente segura de si mesma e do que quer, se quiser tirar a pilinha terá de sofrer anos de condicionamento psiquiátrico), e ele é obrigatório porque a transsexualidade é realmente considerada doença mental, e não vale a pena ir buscar o termo disforia ao dicionário, mas verificar o que é a prática médica em função dessa definição, e o que significa para a vida das pessoas trans a obrigatoriedade do diagnóstico de disforia, que aliás empurra para a definição como "transexual" muitas realidades T que não são de transexualidade, forçando ao processo médico de "transsexualidade" todas as pessoas trans e intersexuais que não sendo transsexuais querem poder viver no género escolhido, ter os documentos de acordo com ele, etc, ou mesmo viver sem se encaixarem num dos géneros do binarismo M/F, coisa que os médicos recusam como possibilidade, porque a função que está atribuída ao psiquiatra é, mais do que o bem-estar psíquico da pessoa, o seu acondicionamento à norma social inviolável do binarismo M/F - assim está construído o sistema. Ou seja, todas as pessoas trans que não são transexuais mas querem alterar o seu corpo - por exemplo hormonar-se - ou aceder a direitos como a alteração do género nos documentos - tem de mentir e fazer-se passar por transexual como se quisesse passar de um referente extremo (M ou F) ao seu oposto (M ou F), da mesma forma que há muito poucos anos (e infelizmente ainda acontece com algun/mas psis), as pessoas "T" que não eram heterossexuais tinham de mentir sistematicamente sobre a sua orientação sexual, porque os médicos acreditavam que não existiam trans homossexuais ou bisexuais, e lhes bloqueavam o processo médico nessa base.
É assim claro que achar que os médicos sabem compreender as identidades e a realidade transexual ou transgénero e deixar-lhes essa definição é, mais uma vez, recusar voz própria à comunidade trans e infantilizá-la, e é desconhecer o poder de bloqueio que a medicalização forçada exerce sobre as vidas de tant@s trans:- só mudas documentos se te operares (e se fores trans mas não transexual e não te quiseres operar?);
- só podes hormonar-te se couberes na estreita definição médica de transsexualidade.
Os médicos e os juízes não só decidem pelas pessoas o que elas são, mas também como é que elas devem viver e em que condições o podem fazer. Que sabem os médicos? O único prémio nobel português, Egas Moniz, lobotomizava homossexuais achando que tinham cura para a sua inargumentável doença.
Panteras Rosa (panthères roses, Paris): "Agradeço que retiremo vosso sexo do meu estado civil."
Acham que a mentalidade médica mudou assim tanto? Pois os médicos progressistas sabem que infelizmente, não.
Não serão @s trans quem se deve definir e quem pode saber definir-se?
Não é por acaso que em todo o mundo, as pessoas trans se organizam cada vez mais em movimento social para serem os seus próprios peritos, e não faltam exemplos disso nos fóruns trans na internet. Não é por acaso que tantos trans não-transexuais em Espanha, estão a submeter-se ao diagnóstico de transexualidade - que nega a sua realidade própria, para terem acesso às hormonas. Nenhuma comunidade discriminada em nenhum momento da história se emancipa com base na crença de ser "um erro da natureza" ou doente. Não se trata de uma doença, trata-se de uma desadequação a uma norma social opressora.
4 - "Então acreditas que um transexual deve viver com o corpo que nasceu, rejeitando dessa forma que se associem sentimentos e formas de estar a qualquer corpo, bastando ser o seu eu próprio psicológico simplesmente, independentemente do corpo que tem?"Claro que não. Sei que essa adequação corporal é necessidade sentida pel@s transsexuais, e em grande medida por parte das restantes realidades transgénero (mas neste segundo caso muitas vezes fora dos referentes Homem/Mulher, do mete ou põe pilinha ou põe ou tira seios, que são os únicos que os psis vêem e permitem - fora os psis esclarecidos, e esses são nossos aliados nesta questão, mas são ainda muito poucos).
O esquema médico praticado é contrário à emancipação comunitária e à auto-estima trans (mesmo quando lhes "resolve a vida"), pois pretende adequar necessariamente as pessoas a serem o mais possível "homens" e "mulheres" (seja isso o que for, e sejam isso o que elas querem ou não) (e já agora, hetero), para que se escondam o mais possível enquanto trans e possam passar por "homens e mulheres" biológicos, e colocando nesse rolo compressor quem não quer integrar-se em nenhum desses extremos do binarismo. E não estou a dizer que não seja essa a expectativa, legítima, da maioria dos transexuais hoje: não desejo a ninguém, aliás, ter de viver assumidamente e visivelmente como lgbt ou T na sociedade actual, porque conheço as consequências disso. Mas nos anos 50 (ainda hoje?), a expectativa de muit@s homossexuais também era serem curados. Defendo que as pessoas possam transformar o seu corpo como bem entendem, da mesma forma que defendo o direito à vida, o direito ao suicídio, o direito à eutanásia ou o direito ao aborto. O corpo é nosso, não é dos médicos e não é do Estado. É nosso e é o que temos de mais nosso.
Assim, quanto ao universo transgénero (e não apenas transexual), defendo obviamente que as pessoas tenham apoio estatal para o fazer, não só pelo simples facto de precisarem de fazê-lo e querem fazê-lo, mas também porque não desejo a ninguém viver nesta sociedade transfóbica sem possibilidade de adequação e alívio da pressão social, logo, sem possibilidade de ser feliz.
5 - "Com essa conversa de que não somos doentes, vocês vão fazer-nos perder o direito ao tratamento noSistema Nacional de Saúde".
Ora bolas. O que deve justificar o apoio estatal aos processos de transição transexual (que realmente é apenas uma parte desta realidade e a única que os médicos vêem) é a infelicidade que esta norma impõe sobre tanta gente (até gays e lésbicas não-trans, que desafiam as expectativas sociais de Homens e Mulheres), e não o facto de ser uma doença. Deixar de ser considerada uma doença não alterará essa infelicidade, embora a prazo possa contribuir para reduzir a parte dela que decorre do estigma social.
Mas a própria discriminação não se baseia só na convicção de se tratar de uma doença, ela baseia-se sobretudo no ódio, no medo e na desconfiança relativamente a tudo o que sai das normas binárias. Recordo que também a lesbigayfobia produz inúmeros problema psicológicos e desadequação social, e que em determinada fase era já só essa a sustentação para a definição de "disforia" relativamente à "função heterossexual" que era - e continua a ser - a única que a sociedade impunha como expectativa sobre as pessoas.
Insistir na "disforia" e - pior - integrar no discurso político do movimento as noções dos médicos, acreditando que uma sociedade profundamente desconhecedora e transfóbica pode produzir um sistema médico esclarecido sobre a matéria, é desistir da luta pela auto-estima e auto-definição desta comunidade, que é a mais urgente.
Relembro que já vai havendo psiquiatras e psicólogos que trabalham na área, que conseguem desmontar o preconceito médico nesta matéria e que começam a pronunciar-se eles mesmos contra psiquiatrização forçada sem deixarem de defender a continuação e mesmo o alargar do apoio existente no Sistema Nacional de Saúde.
6 - "Mas exigindo a despsiquiatrização vocês estão a recusar apoio psicológico a tantos/as trans que dele precisam, e a recusar que seja necesária uma avaliação para se esclarecerem casos reais de transexualidade de outros que são perturbações psicológicas, num processo que termina com uma cirurgia irreversível".
Nem pó. Para começar, lutar contra a psiquiatrização forçada não é nem recusar apoio psicológico a quem dele precisa. Significa, sim, querer que o sistema médico não imponha às pessoas trans a sua visão estreita, e sirva para ajudar as pessoas SEMPRE e no reconhecimento da diversidade das identidades de género, e não para as apoiar apenas nos casos em que elas se possam formatar ao binarismo vigente ou quando muito a uma definição estreita de transexualidade (que no fundo continua a querer encaixar as pessoas à força no mesmo binarismo) custe o que custar, mesmo que custe a sua felicidade e a sua verdadeira identidade, que tantas vezes não cabe na definição médica.
Não esqueçamos já agora que para esta sociedade - a que os médicos não escapam - ser trans é já não estar no "juízo perfeito". Para os médicos das equipas oficiais de transexualidade, uma pessoa trans já não é uma pessoa no seu perfeito juízo, e se em vez de trans for transgénero, quiser por exemplo tomar hormonas sem trocar de sexo, então é mesmo louca e não será apoiada pelo sistema actual - portanto, como deixar isto nas mãos dos médicos? como prescindimos do discurso político de emancipação e self-reenforcement para pegarmos no discurso médico que faz das pessoas coitadinhas e doentes? com que direito?
É espantoso, que sendo o trangenerismo - e a própria transexualidade - uma desconstrução evidente do binarismo de géneros como realidade humana exclusiva (os papéis de género são, de facto, construção social), o objectivo médico seja - quer as pessoas queiram quer não - formatá-las o mais possível aos modelos de Homem e Mulher. Recordo também que a lei espanhola, que peca precisamente por fazer depender direitos da obrigatoriedade do diagnóstico médico (de transexualidade, ignorando e pondo nesse saco todas as outras realidades trans e intersexuais) e uma decisão judicial, foi criada precisamente - e isso é o que tem de bom - para diminuir o poder dos médicos sobre estas vidas: menos tempo de acompanhamento obrigatório, não-necessidade da cirurgia para se alterar documentos, etc...
Mas esta mesma Lei continua a enquadrar as pessoas como doentes mentais. Felizmente, alguns médicos, nomeadamente psis e até em Portugal, começam hoje a posicionar-se contra essa psiquiatrização forçada, enquanto contraditoriamente há activistas trans que a continuam a defender com unhas e dentes. Em muitos países, e também em Portugal, alguns/mas psiquiatras e psicológ@s, embora não @s do "protocolo oficial" da transexualidade, já se pronuncia publicamente contra a psiquiatrização forçada. Sugiro também, para quem entenda o catalão, a visita ao site da
O manifesto deste grupo está disponível em Inglês aqui: http://guerrilla-travolaka.blogspot.com/2006/10/manifesto-translated-to-english.html
De qualquer forma, uma coisa é o discurso médico. Mas que activistas lgb e, pior, T, assumam que as pessoas trans são disfóricas, isto é, doentes mentais, isso não é aceitável. E quem o fizer não pode esperar querer trabalhar com pessoas que acabou de classificar como "disfóricas", ou seja, "doentes mentais".
7 - Mas "disforia" é apenas uma desadequação, não significa doença mental...
Desadequação, o tanas. Não há pessoas "desadequadas". "Disforia" significa, no mínimo, que se tem um "problema". Ora, a transexualidade ou qualquer outra realidade trans, não tem de ser um problema (isto equivale aos discursos supostamente solidários que muito se ouviam sobre homossexualidade no início dos anos 90, quando nos falavam do "problema da homossexualidade", quando o único "problema" está obviamente na sua discriminação social).
Infelizmente, qualquer relação médico-paciente é em si uma relação de menorização - um paciente, para mais com uma "disforia mental" (segundo a medicina), não tem voz, nem palavra nem querer, submete-se à identificação e orientação comportamental em que os médicos o encaixam - ora, essa retirada tão total e totalitária de poder à pessoa só acontece nos casos de "doença mental profunda", considerando-se que esta não está no seu perfeito juízo para saber o que quer e tomar as suas próprias decisões, necessitando de ser compulsivamente orientada e obrigatoriamente psiquiatrizada. No caso da suposta "disforia de género", a maioria do corpo médico - o próprio sistema tal como está concebido - fá-lo com todos os preconceitos e limitações de visão que possamos imaginar. Se bem que o processo actual sirva a muit@s, e até seja defendido como óptimo por muit@s, trans (se eu precisasse de mudar de sexo ou de me hormonar e me ajudassem nesse processo, eu também teria provavelmente dificuldade de ter sobre ele um olhar crítico), ele também produz para muitas pessoas a hipocrisia da necessidade de se representar papéis do que não se é (para se poder ver reconhecido pelos médicos e juízes o acesso ao que se pretende), tal como produz também muitas pessoas infelizes e desajustadas, perdidas mesmo, às definições binárias em que os médicos as encaixaram. E tenho encontrado muitas, mas não em Portugal, porque não há reflexão que permita ainda entender o género como construção, e daí este debate que estamos a ter ser fundamental ao movimento lgbt português hoje.
Que os médicos , incluíndo os psis, acompanhem as pessoas que precisam de apoio psicológico, é uma coisa. Que se advoguem o direito de formatar e definir as pessoas melhor do que elas próprias, resumindo a realidade transgénero e transexual em toda a sua diversidade a um único modelo de transexualidade pré-concebido e referente aos modelos máximos M ou F, mantendo anos de poder sobre a vida pessoal e laboral das pessoas (porque do processo médico e dos juízes dependem os papéis, e outros direitos), e que o movimento lgbt ele próprio fale de "disforia" em vez de afirmar que ser trans não é uma doença, e que, para lá da discriminação (que é o nosso adversári), se pode viver bem enquanto transgénero, enquanto transexual, enquanto o que se for, e que não se deve chamar doença a uma variação NATURAL na espécie humana, isso não aceito.
A identidade de género fora da norma NÃO é uma doença mental, não é uma disforia!
E insisto que é assim que as pessoas são tratadas no sistema, como doentes mentais, pelos quais os médicos são supostos pensar e definir.
As identidades de género fora da norma são uma demonstração da diversidade humana e do engano de pensarmos no género como a coisa que se tem entre as pernas, mesmo que aceitemos e defendamos o direito das pessoas a adequar o seu corpo às suas expectativas (não esqueçamos que essas expectativas são construídas relativamente à realidade social e ao querer-se viver em paz na sociedade que existe - mas não queremos nós desafiar o binarismo de que esta sociedade sofre?) .
Mais, insistir no discurso da disforia de género perante uma comunidade ainda mais (!) envergonhada de si mesma do que a lgb, é fazer como fizeram tantos grupos homossexuais até à retirada da homossexualidade da listagem de doenças; continuar o discurso de "coitadinhos, somos doentes, tratem-nos com piedade", em vez do somos pessoas, existimos e somos assim, não temos vergonha do que somos nem do que queremos ser, e agora seremos nós a definir-nos e a ensinar à sociedade e aos médicos o que somos, como somos, o que queremos ser e porque é que já não toleramos mais viver sob esta discriminação absurda a que chamamos transfobia.
Estamos a falar, no fundo, de as pessoas - todas - dos grupos estigmatizados conquistarem o espaço para a construção das suas próprias identidades sem esse processo ter de ser condicionado pelos psis quando estas não precisam de apoio a esse nível e sabem muito bem o que querem. Se não insistirmos em classificá-las como disfóricas, e lutarmos contra a transfobia social e pelo esclarecimento da questão na sociedade, serão cada vez menos @s trans necessitados desse apoio, tal como acontece com os homossexuais, e não farão sentido nesses casos - já não fazem, porque o ciclo é vicioso - anos e anos de avaliação e dependência, e formatação dos psis para que as pessoas consigam acesso ao que querem para viver felizes.
Pois que as pessoas possam ser felizes por teremos trabalhado pelo seu direito de auto-definição, auto-suficiência e emancipação pessoal. Enquanto a transfobia tiver o grau que tem em Portugal, e enquanto deixarmos aos médicos o encaixar das pessoas, estamos a contribuir para gerações e gerações de trans envergonhados de si próprios, que se vêem como pessoas doentes que foram "curadas" ou "erros da natureza" que foram "corrigidas", e, portanto, a favorecer mais trans envergonhados de si mesmos, escondidos e invisíveis (sem julgamento nenhum de quem se esconde - é o mesmo para a homofobia, falarmos de visibilidade e construirmos um movimento público não quer dizer que achemos que tod@s @s lgb se devam expor de cabeça à discriminação vigente), e já agora, para a não-existência a prazo de um movimento trans autónomo, com um discurso e uma auto-visão própria (que nunca será a dosmédicos), capaz de construir melhores vidas para trans nesta sociedade. Nós somos movimento social,a nós cabe-nos combater a discriminação, afirmar o valor e a existência e o orgulho (a não-vergonha) nas nossas identidades, e não querermos ser mais médicos do que os próprios médicos e menorizarmos ao lugar de "pacientes" todas as pessoas de um grupo oprimido: as que estão perdidas no mundo com a sua diferença e precisam de um apoio (que até pode vir de organizações trans, preferencialmente, e só nalguns casos de desiquilíbrio pessoal se justifica que fosse médico), e aquelas que não estão nada perdidas nem vivem mal o que são e sabem muito bem o que querem. Não somos médicos, somos activistas. O nosso dever não é classificar, é entender, explicar e emancipar. Os médicos não emancipam, diminuem as pessoas numa relação de poder em que eles sabem sempre melhor do que "o paciente". Não, não faz sentido o poder que os médicos têm sobre tantas vida, e em particular das pessoas trans. E creio mesmo que em todos os casos de pessoas não necessitadas de apoio psicológico, estas não deviam sequer ser confrontadas com um psi que pode fazer escolhas por elas - mas sim ter acesso ao tratamento hormonal e à cirurgia, e pronto, sem mais nada. As pessoas fazem as suas escolhas de vida e são responsáveis por elas.
8 - Essa posição é "extremista".Ora bem, "extrema" é a opressão que sofrem as identidades de género que não cabem na binomia homem/mulher, e "extremista" é a discriminação. Mas um discurso que hoje continue a precindir de afirmar as pessoas trans como responsáveis por si mesmas, e desnecessitadas de tutela médica e categorização de doentes, não conseguirá nada nem para daqui a 20 anos, sobretudo em termos de emancipação mental da própria comunidade trans.
O discurso activista tem de ser emancipatório e construtor da auto-estima, consciencialização e união das pessoas discriminadas. Se eu posso ir a uma loja de tatuagens fazer-me queimar com um ferro pelo corpo todo, porque não pode uma pessoa trans alterar o seu corpo apenas porque quer fazê-lo, porque pessoalmente necessita de fazê-lo? É menos do que eu? Tem menos capacidade de auto-determinação? É doente mental e deve ser protegida de si mesma? Isto não tem nada que ver com o facto óbvio de nos grupos socialmente muito discriminados ser habitual que muitos indivíduos necessitem de apoio psicológico - assim é, claro, no caso da sexualidade e da identidade de género fora da norma social - sobretudo nos seus processos de transição (descoberta de homossexualidade, transição corporal transexual, etc...).
Mas neste contexto o mais importante é trabalhar a auto-estima -o orgulho, se quiserem - colectivo e individual destas pessoas e grupos sociais - isto não é teoria inútil, é o que determina a utilidade da nossa prática hoje e, do futuro próximo ao longínquo, os resultados concretos do nosso activismo sobre género. As escolhas que fizermos quanto ao nosso discurso político sobre trans nos próximos anos podem, como demonstra este debate, ir num sentido ou no outro. A definição estrita de transexual indica de facto o desejo de um género a outro (M-F, F-M). As restantes realidades, que não têm o M ou o F como refentes serão outras coisas que não transexuais - intersexuais, transgénero, travestis, o que quisermos, mas a luta política essencial continua a ser a mesma, contra o binarismo de género que oprime quaisquer pessoas que não nasçam biológica e, em correspondência entre corpo e mente, psicologicamente M ou F, e pela união de tod@s estes/as "marginais de género" (atenção, quem marginaliza é a sociedade binómica, é nesse sentido que uso o termo).
Assumamo-nos então realmente como "marginais de género", como "gender queers", ou simplesmente como L, G, B, T, I, mulheres (não-submetidas à submissão do feminino ou ainda não-heterossexuais), homens (não-submetidos à obrigatoriedade do uso do seu poder e privilégio masculino, ou simplesmente não-heterossexuais), outros ainda - em suma, identidades e realidades pessoais que não encaixamos nem acreditamos nesta mentira simplificadora que nos está imposta, e portanto, identidades e realidades pessoais que são necessariamente identidades de resistência e de luta, quer o queiramos, quer não. Um dia, o mundo será nosso e seremos tod@s mais felizes . Em alternativa, continuaremos nesta idade média que nega a própria diversidade humana. A escolha é, parcialmente, nossa, e ao movimento lgbt (etc) português... coloca-se agora.
A clivagem é gigantesca e a questão não é para menos. Veja-se que as recentes medidas concretas aprovadas recentemente em Espanha, embora positivas porque alteram a vida concreta das pessoas e facilitam-lhes o viver no género escolhido com menor peso da discriminação e do estigma, se baseiam, porém, na ideia de que se trata de uma doença, e que é nessa base que estas pessoas vêem reconhecido o seu direito à protecção estatal, ou a que processos como o da mudança de nome sem obrigatoriedade de se ser operado/a sejam facilitados.
Veja-se, por outro lado, que o sistema médico - com excepção para uma minoria de profissionais mais evoluídos sobre a questão, incluíndo psiquiatras e psicólogos, que foram mais longe, compreenderam as reivindicações da própria comunidade trans e estão a ter novas práticas, mais desempoeiradas - não tem apenas vistas curtas, mas continua sobretudo a ser de enorme violência, ao encaixar à força as pessoas que o procuram na pequenez das suas próprias definições de "transexual" em vez de lhes dar espaço para se auto-definirem ou ainda, exemplo mais evidente, quando exige aos transexuais masculinos a sua esterilização - pois claro, que gajos com possibilidade de engravidarem, isso dava cabo do sacrossanto binarismo!
Pessoalmente, parti para este debate acreditando que a luta mais urgente nesta área da identidade de género e do combate ao binarismo de género - que argumentarei ser um combate necessário e comum a tod@s @s que lutam pela liberdade sexual e contra a discriminação sexual, e não apenas um combate trans com que o universo "lgb" deva ser "solidário" - deve incluir não apenas os direitos concretos conquistados em Espanha (e mais ainda), mas também e sobretudo combater a psiquiatrização forçada a que é sujeita maioria d@s trans.
Esta é uma questão que tem provocado uma discussão intensa e muito útil nas listas associativas e entre as próprias Panteras Rosa. As notas que se seguem, da minha autoria, são, no entanto, resultantes desse debate, com malta trans, com malta não-trans, como malta indefinida mas interessada, pouco importa. O que importa é alargar este mesmo debate, porque ele é central. Creio que o movimento trans vive hoje uma clivagem apenas comparada à dos movimentos homossexuais norte-americanos pré-Stonewall dos anos 50, que reivindicavam direitos e o fim da repressão com base no facto de estarem classificados como "doentes" - "recordam-se da classificação de "disfunção da função heterossexual que em Portugal só desapareceu em 2000?" - e ficaram de calças na mão quando a homossexualidade foi retirada dessa mesma lista de doenças pela American Psichiatry Association, mas entretanto já tinham sido ultrapassados pela revolta de Stonewall, que dava corpo a um novo movimento, mais radicalizado e nada disposto a aceitar a medicalização das suas identidades. Porque resulta de um debate, muitas destas notas surgem em forma de pergunta-resposta. As perguntas ou argumentos alheios surgem a bold, seguidas da minha opinião pessoal:
1 - Pré-questão lateral (que originou o debate): "É fundamental distinguir travestis de transexuais, pelo que devemos usar uma sigla com LGBTT".
Sim e não. Convém distinguir "travestismo" de "transexualidade", de "intersexualidade", de "trangenderismo", e etc, por uma questão de clarificação de conceitos. No entanto, e sem prejuízo de quem queira concentrar-se em trabalhar exclusivamente para parte destas realidades, julgo que a luta de todos estes grupos - e até da população lgb - contra o binarismo de género que nos impõe a falsidade da existência exclusiva de homens e de mulheres, é uma só, e que a opressão que sofremos em função deste falso binarismo é o nosso adversário comum, e justifica não apenas siglas como LGBTI (já usadas em alguns países), como o facto de realidades tão distintas se juntarem num mesmo movimento social.
Isto é válido, seja esse estigma traduzido em:
- homofobia (por sermos vistos como desviados face aos referentes sociais, aos papéis de género, de masculinidade e feminilidade);
- transfobia ou ainda negação da intersexualidade, porque a população trans (seja travesti, transexual, trangénera ou outra) e intersexual desafia o binarismo e comprova a sua falsidade ao demonstrar uma rica variedade de identidades de género e até de realidades biológicas que não cabem numa definição exacta de homem ou mulher;
- sexismo (porque aos referentes absolutos de macho e fêmea correspondem atributos de género e relações de poder socialmente construídas).
- machismo, que contraditoriamente é uma opressão que recai sobre tod@s, inclusivamente os seus supostos agentes, os Homens.
homofobia ou transfobia internalizada - veja-se como a própria "cultura gay", sobretudo a parte dela que já não é construída pelo movimento social mas pelo consumo - trabalha hoje os conceitos de masculinidade e discrimina a "bichice" e o "efeminado" sem se dar conta de que rejeita a própria liberdade de sermos quem somos ou como queremos ser, fora das imposições masculino (posição de poder e necessariamente hetero)/ femino (posição de submissão e necessariamente hetero) que estão na origem do sexismo e do patriarcado e, porque continuam a estruturar realidade social e mentalidade, na origem da própria discriminação da homossexualidade.
Voltando aos T's: considero útil distinguir conceitos, mas não considero útil que se separem e parcelem lutas que têm por inimigo comum o binarismo de género e as relações de poder que lhe estão associadas, porque esse sistema binário de géneros é a fonte comum da opressão de género que recai sobre todos estes grupos, e até é parcialmente fonte da lesbigayfobia, logo, deve ser o alvo comum de todas estas diferentes lutas de emancipação. Da mesma forma que não me envergonha se me chamarem trans ou travesti - pelo contrário, assumo solidariamente todas as identidades marginais que me queiram atribuir, mesmo que não sejam realmente aquelas que me traduzem - não creio que o universo trans deva , mesmo que lute pelo esclarecimento dos conceitos e das identidades diversas (que, por serem diversas, merecem ser nomeadas per se), dividir-se em lutas separadas ou sequer fazer questão de parcelamento da silga "T". Sobretudo porque vivemos uma realidade de grande discriminação interna entre "transexuais", "transgénero" e travestis, com que não devemos pactuar. Para lá do esclarecimento de conceitos, não compreendo nem aceito a necessidade de tant@s "T" se distinguirem de outros "T's", e soa-me àqueles bairros sociais típicos de Lisboa em que portugueses, ciganos e africanos se odeiam mutuamente e se separam, apesar de estarem todos no mesmo barco.
2 - Incomodam-me os discursos associativos - trans ou não - que mimetizam o discurso médico ao assumir falar de "disforia de género".
"Disforia" é um termo médico que foi utilizado neste século para psiquiatrizar a transexualidade e, com ela, as restantes realidades trans. As identidades de género que escapam à norma binária M/F - e mais ainda algumas realidades biológicas intersexuais, ainda muito pouco estudadas, que escapam à caracterização médica de macho e de fêmea - não são nem uma doença nem uma disforia, e está na altura de o afirmar e de deixarmos de pactuar com este discurso.
Doente é a sociedade que não sabe lidar com estas diferenças sem as categorizar como doenças e entregar a vida das pessoas nas mãos de médicos que as irão tratar como doentes mentais. A OMS prepara-se para, num curto espaço de tempo, retirar a transexualidade da lista de doenças, e no entanto, tal como aconteceu com a homossexualidade há mais de 20 anos, vemos ainda activistas trans a serem os primeiros a assumir o discurso da doença e da disforia, e até vemos a aprovação legal de direitos para as pessoas transexuais - como recentemente em Espanha - feito na base do pressuposto da doença, ou seja, de reconhecer direitos a "coitadinhos".
Basta! É inadmissível que a luta se faça na base dos coitadinhos doentes, tal como há 20 anos ainda havia organizações homossexuais a exigir direitos com base na classificação da "disforia" que lhes era atribuída. As identidades sexuais e de género marginalizadas nestas sociedade não são doenças. Para mim são - isso sim - o germen da subversão e transformação de uma sociedade binária que só vê homem/mulher tanto em termos de sexualidade como de género (sim, também importa, provavelmente até importa muito mais, distinguir os conceitos de "identidade de género" e de "papéis de género"), e que é incapaz de reconhecer a realidade e a natureza da própria diversidade da espécie humana. Esta é a nossa opressão e a nossa luta, sejamos l, g, b, t, t, t, t, t, t, i, q, mulheres, homens ou qualquer outra coisa que não caiba nesta mentira absoluta da exclusividade do H (de hetero) e do M/F (de macho-fêmea).
3 - Enviam-me algumas definições de Disforia... (obrigado, Rita): "Disforia é uma mudança repentina e transitória do estado de ânimo, tais como sentimentos de tristeza , pena, angústia. É um mal estar psíquico acompanhado por sentimentos depressivos, tristeza, melancolia e pessimismo. http://pt.wikipedia.org/wiki/Disforia dysphoria Excessive pain, anguish, agitation) disquiet, restlessness, malaise. (18 Nov 1997) http://cancerweb.ncl.ac.uk/cgi-bin/omd?dysphoria Gender dysphoriaIntroductionA person with gender dysphoria experiences anxiety, uncertainty or persistently uncomfortable feelings about their birth gender. They feel that they have a gender identity that is different from their anatomical sex. This may lead to a fear of expressing their feelings and a fear of rejection, which may lead to deep anxiety, leading to chronic depression and possibly attempted suicide.(...)http://www.nhsdirect.nhs.uk/articles/article.aspx?articleId=435"
O.K., o.k., parole. Eu acredito que a origem da necessidade de adequação do corpo para resulta, provavelmente, na maioria das realidades transexuais ou próximas em que as pessoas têm essa pulsão, da pressão social que valoriza como valoriza o binarismo de géneros e as diferenças entre géneros. Acredito que numa sociedade sem binarismo de géneros e opressão degénero, a transsexualidade seria vivida de outra forma. Essa seria uma longa discussão teórica.
Mas insisto na comparação entre a "disforia homossexual" de há 20 anos, e a "disforia de género", por todos os motivos. O mal estar das pessoas transexuais com o seu corpo resulta, acredito eu, do condicionamento social quanto às construções do masculino e do feminino. É evidente que muit@s trans - tal como outras pessoas, necessitam de apoio psicológico, mas este é o único caso em que ele obrigatório, e para todo um grupo social (até mesmo uma pessoa trans já inteiramente segura de si mesma e do que quer, se quiser tirar a pilinha terá de sofrer anos de condicionamento psiquiátrico), e ele é obrigatório porque a transsexualidade é realmente considerada doença mental, e não vale a pena ir buscar o termo disforia ao dicionário, mas verificar o que é a prática médica em função dessa definição, e o que significa para a vida das pessoas trans a obrigatoriedade do diagnóstico de disforia, que aliás empurra para a definição como "transexual" muitas realidades T que não são de transexualidade, forçando ao processo médico de "transsexualidade" todas as pessoas trans e intersexuais que não sendo transsexuais querem poder viver no género escolhido, ter os documentos de acordo com ele, etc, ou mesmo viver sem se encaixarem num dos géneros do binarismo M/F, coisa que os médicos recusam como possibilidade, porque a função que está atribuída ao psiquiatra é, mais do que o bem-estar psíquico da pessoa, o seu acondicionamento à norma social inviolável do binarismo M/F - assim está construído o sistema. Ou seja, todas as pessoas trans que não são transexuais mas querem alterar o seu corpo - por exemplo hormonar-se - ou aceder a direitos como a alteração do género nos documentos - tem de mentir e fazer-se passar por transexual como se quisesse passar de um referente extremo (M ou F) ao seu oposto (M ou F), da mesma forma que há muito poucos anos (e infelizmente ainda acontece com algun/mas psis), as pessoas "T" que não eram heterossexuais tinham de mentir sistematicamente sobre a sua orientação sexual, porque os médicos acreditavam que não existiam trans homossexuais ou bisexuais, e lhes bloqueavam o processo médico nessa base.
É assim claro que achar que os médicos sabem compreender as identidades e a realidade transexual ou transgénero e deixar-lhes essa definição é, mais uma vez, recusar voz própria à comunidade trans e infantilizá-la, e é desconhecer o poder de bloqueio que a medicalização forçada exerce sobre as vidas de tant@s trans:- só mudas documentos se te operares (e se fores trans mas não transexual e não te quiseres operar?);
- só podes hormonar-te se couberes na estreita definição médica de transsexualidade.
Os médicos e os juízes não só decidem pelas pessoas o que elas são, mas também como é que elas devem viver e em que condições o podem fazer. Que sabem os médicos? O único prémio nobel português, Egas Moniz, lobotomizava homossexuais achando que tinham cura para a sua inargumentável doença.
Panteras Rosa (panthères roses, Paris): "Agradeço que retiremo vosso sexo do meu estado civil."
Acham que a mentalidade médica mudou assim tanto? Pois os médicos progressistas sabem que infelizmente, não.
Não serão @s trans quem se deve definir e quem pode saber definir-se?
Não é por acaso que em todo o mundo, as pessoas trans se organizam cada vez mais em movimento social para serem os seus próprios peritos, e não faltam exemplos disso nos fóruns trans na internet. Não é por acaso que tantos trans não-transexuais em Espanha, estão a submeter-se ao diagnóstico de transexualidade - que nega a sua realidade própria, para terem acesso às hormonas. Nenhuma comunidade discriminada em nenhum momento da história se emancipa com base na crença de ser "um erro da natureza" ou doente. Não se trata de uma doença, trata-se de uma desadequação a uma norma social opressora.
4 - "Então acreditas que um transexual deve viver com o corpo que nasceu, rejeitando dessa forma que se associem sentimentos e formas de estar a qualquer corpo, bastando ser o seu eu próprio psicológico simplesmente, independentemente do corpo que tem?"Claro que não. Sei que essa adequação corporal é necessidade sentida pel@s transsexuais, e em grande medida por parte das restantes realidades transgénero (mas neste segundo caso muitas vezes fora dos referentes Homem/Mulher, do mete ou põe pilinha ou põe ou tira seios, que são os únicos que os psis vêem e permitem - fora os psis esclarecidos, e esses são nossos aliados nesta questão, mas são ainda muito poucos).
O esquema médico praticado é contrário à emancipação comunitária e à auto-estima trans (mesmo quando lhes "resolve a vida"), pois pretende adequar necessariamente as pessoas a serem o mais possível "homens" e "mulheres" (seja isso o que for, e sejam isso o que elas querem ou não) (e já agora, hetero), para que se escondam o mais possível enquanto trans e possam passar por "homens e mulheres" biológicos, e colocando nesse rolo compressor quem não quer integrar-se em nenhum desses extremos do binarismo. E não estou a dizer que não seja essa a expectativa, legítima, da maioria dos transexuais hoje: não desejo a ninguém, aliás, ter de viver assumidamente e visivelmente como lgbt ou T na sociedade actual, porque conheço as consequências disso. Mas nos anos 50 (ainda hoje?), a expectativa de muit@s homossexuais também era serem curados. Defendo que as pessoas possam transformar o seu corpo como bem entendem, da mesma forma que defendo o direito à vida, o direito ao suicídio, o direito à eutanásia ou o direito ao aborto. O corpo é nosso, não é dos médicos e não é do Estado. É nosso e é o que temos de mais nosso.
Assim, quanto ao universo transgénero (e não apenas transexual), defendo obviamente que as pessoas tenham apoio estatal para o fazer, não só pelo simples facto de precisarem de fazê-lo e querem fazê-lo, mas também porque não desejo a ninguém viver nesta sociedade transfóbica sem possibilidade de adequação e alívio da pressão social, logo, sem possibilidade de ser feliz.
5 - "Com essa conversa de que não somos doentes, vocês vão fazer-nos perder o direito ao tratamento noSistema Nacional de Saúde".
Ora bolas. O que deve justificar o apoio estatal aos processos de transição transexual (que realmente é apenas uma parte desta realidade e a única que os médicos vêem) é a infelicidade que esta norma impõe sobre tanta gente (até gays e lésbicas não-trans, que desafiam as expectativas sociais de Homens e Mulheres), e não o facto de ser uma doença. Deixar de ser considerada uma doença não alterará essa infelicidade, embora a prazo possa contribuir para reduzir a parte dela que decorre do estigma social.
Mas a própria discriminação não se baseia só na convicção de se tratar de uma doença, ela baseia-se sobretudo no ódio, no medo e na desconfiança relativamente a tudo o que sai das normas binárias. Recordo que também a lesbigayfobia produz inúmeros problema psicológicos e desadequação social, e que em determinada fase era já só essa a sustentação para a definição de "disforia" relativamente à "função heterossexual" que era - e continua a ser - a única que a sociedade impunha como expectativa sobre as pessoas.
Insistir na "disforia" e - pior - integrar no discurso político do movimento as noções dos médicos, acreditando que uma sociedade profundamente desconhecedora e transfóbica pode produzir um sistema médico esclarecido sobre a matéria, é desistir da luta pela auto-estima e auto-definição desta comunidade, que é a mais urgente.
Relembro que já vai havendo psiquiatras e psicólogos que trabalham na área, que conseguem desmontar o preconceito médico nesta matéria e que começam a pronunciar-se eles mesmos contra psiquiatrização forçada sem deixarem de defender a continuação e mesmo o alargar do apoio existente no Sistema Nacional de Saúde.
6 - "Mas exigindo a despsiquiatrização vocês estão a recusar apoio psicológico a tantos/as trans que dele precisam, e a recusar que seja necesária uma avaliação para se esclarecerem casos reais de transexualidade de outros que são perturbações psicológicas, num processo que termina com uma cirurgia irreversível".
Nem pó. Para começar, lutar contra a psiquiatrização forçada não é nem recusar apoio psicológico a quem dele precisa. Significa, sim, querer que o sistema médico não imponha às pessoas trans a sua visão estreita, e sirva para ajudar as pessoas SEMPRE e no reconhecimento da diversidade das identidades de género, e não para as apoiar apenas nos casos em que elas se possam formatar ao binarismo vigente ou quando muito a uma definição estreita de transexualidade (que no fundo continua a querer encaixar as pessoas à força no mesmo binarismo) custe o que custar, mesmo que custe a sua felicidade e a sua verdadeira identidade, que tantas vezes não cabe na definição médica.
Não esqueçamos já agora que para esta sociedade - a que os médicos não escapam - ser trans é já não estar no "juízo perfeito". Para os médicos das equipas oficiais de transexualidade, uma pessoa trans já não é uma pessoa no seu perfeito juízo, e se em vez de trans for transgénero, quiser por exemplo tomar hormonas sem trocar de sexo, então é mesmo louca e não será apoiada pelo sistema actual - portanto, como deixar isto nas mãos dos médicos? como prescindimos do discurso político de emancipação e self-reenforcement para pegarmos no discurso médico que faz das pessoas coitadinhas e doentes? com que direito?
É espantoso, que sendo o trangenerismo - e a própria transexualidade - uma desconstrução evidente do binarismo de géneros como realidade humana exclusiva (os papéis de género são, de facto, construção social), o objectivo médico seja - quer as pessoas queiram quer não - formatá-las o mais possível aos modelos de Homem e Mulher. Recordo também que a lei espanhola, que peca precisamente por fazer depender direitos da obrigatoriedade do diagnóstico médico (de transexualidade, ignorando e pondo nesse saco todas as outras realidades trans e intersexuais) e uma decisão judicial, foi criada precisamente - e isso é o que tem de bom - para diminuir o poder dos médicos sobre estas vidas: menos tempo de acompanhamento obrigatório, não-necessidade da cirurgia para se alterar documentos, etc...
Mas esta mesma Lei continua a enquadrar as pessoas como doentes mentais. Felizmente, alguns médicos, nomeadamente psis e até em Portugal, começam hoje a posicionar-se contra essa psiquiatrização forçada, enquanto contraditoriamente há activistas trans que a continuam a defender com unhas e dentes. Em muitos países, e também em Portugal, alguns/mas psiquiatras e psicológ@s, embora não @s do "protocolo oficial" da transexualidade, já se pronuncia publicamente contra a psiquiatrização forçada. Sugiro também, para quem entenda o catalão, a visita ao site da
O manifesto deste grupo está disponível em Inglês aqui: http://guerrilla-travolaka.blogspot.com/2006/10/manifesto-translated-to-english.html
De qualquer forma, uma coisa é o discurso médico. Mas que activistas lgb e, pior, T, assumam que as pessoas trans são disfóricas, isto é, doentes mentais, isso não é aceitável. E quem o fizer não pode esperar querer trabalhar com pessoas que acabou de classificar como "disfóricas", ou seja, "doentes mentais".
7 - Mas "disforia" é apenas uma desadequação, não significa doença mental...
Desadequação, o tanas. Não há pessoas "desadequadas". "Disforia" significa, no mínimo, que se tem um "problema". Ora, a transexualidade ou qualquer outra realidade trans, não tem de ser um problema (isto equivale aos discursos supostamente solidários que muito se ouviam sobre homossexualidade no início dos anos 90, quando nos falavam do "problema da homossexualidade", quando o único "problema" está obviamente na sua discriminação social).
Infelizmente, qualquer relação médico-paciente é em si uma relação de menorização - um paciente, para mais com uma "disforia mental" (segundo a medicina), não tem voz, nem palavra nem querer, submete-se à identificação e orientação comportamental em que os médicos o encaixam - ora, essa retirada tão total e totalitária de poder à pessoa só acontece nos casos de "doença mental profunda", considerando-se que esta não está no seu perfeito juízo para saber o que quer e tomar as suas próprias decisões, necessitando de ser compulsivamente orientada e obrigatoriamente psiquiatrizada. No caso da suposta "disforia de género", a maioria do corpo médico - o próprio sistema tal como está concebido - fá-lo com todos os preconceitos e limitações de visão que possamos imaginar. Se bem que o processo actual sirva a muit@s, e até seja defendido como óptimo por muit@s, trans (se eu precisasse de mudar de sexo ou de me hormonar e me ajudassem nesse processo, eu também teria provavelmente dificuldade de ter sobre ele um olhar crítico), ele também produz para muitas pessoas a hipocrisia da necessidade de se representar papéis do que não se é (para se poder ver reconhecido pelos médicos e juízes o acesso ao que se pretende), tal como produz também muitas pessoas infelizes e desajustadas, perdidas mesmo, às definições binárias em que os médicos as encaixaram. E tenho encontrado muitas, mas não em Portugal, porque não há reflexão que permita ainda entender o género como construção, e daí este debate que estamos a ter ser fundamental ao movimento lgbt português hoje.
Que os médicos , incluíndo os psis, acompanhem as pessoas que precisam de apoio psicológico, é uma coisa. Que se advoguem o direito de formatar e definir as pessoas melhor do que elas próprias, resumindo a realidade transgénero e transexual em toda a sua diversidade a um único modelo de transexualidade pré-concebido e referente aos modelos máximos M ou F, mantendo anos de poder sobre a vida pessoal e laboral das pessoas (porque do processo médico e dos juízes dependem os papéis, e outros direitos), e que o movimento lgbt ele próprio fale de "disforia" em vez de afirmar que ser trans não é uma doença, e que, para lá da discriminação (que é o nosso adversári), se pode viver bem enquanto transgénero, enquanto transexual, enquanto o que se for, e que não se deve chamar doença a uma variação NATURAL na espécie humana, isso não aceito.
A identidade de género fora da norma NÃO é uma doença mental, não é uma disforia!
E insisto que é assim que as pessoas são tratadas no sistema, como doentes mentais, pelos quais os médicos são supostos pensar e definir.
As identidades de género fora da norma são uma demonstração da diversidade humana e do engano de pensarmos no género como a coisa que se tem entre as pernas, mesmo que aceitemos e defendamos o direito das pessoas a adequar o seu corpo às suas expectativas (não esqueçamos que essas expectativas são construídas relativamente à realidade social e ao querer-se viver em paz na sociedade que existe - mas não queremos nós desafiar o binarismo de que esta sociedade sofre?) .
Mais, insistir no discurso da disforia de género perante uma comunidade ainda mais (!) envergonhada de si mesma do que a lgb, é fazer como fizeram tantos grupos homossexuais até à retirada da homossexualidade da listagem de doenças; continuar o discurso de "coitadinhos, somos doentes, tratem-nos com piedade", em vez do somos pessoas, existimos e somos assim, não temos vergonha do que somos nem do que queremos ser, e agora seremos nós a definir-nos e a ensinar à sociedade e aos médicos o que somos, como somos, o que queremos ser e porque é que já não toleramos mais viver sob esta discriminação absurda a que chamamos transfobia.
Estamos a falar, no fundo, de as pessoas - todas - dos grupos estigmatizados conquistarem o espaço para a construção das suas próprias identidades sem esse processo ter de ser condicionado pelos psis quando estas não precisam de apoio a esse nível e sabem muito bem o que querem. Se não insistirmos em classificá-las como disfóricas, e lutarmos contra a transfobia social e pelo esclarecimento da questão na sociedade, serão cada vez menos @s trans necessitados desse apoio, tal como acontece com os homossexuais, e não farão sentido nesses casos - já não fazem, porque o ciclo é vicioso - anos e anos de avaliação e dependência, e formatação dos psis para que as pessoas consigam acesso ao que querem para viver felizes.
Pois que as pessoas possam ser felizes por teremos trabalhado pelo seu direito de auto-definição, auto-suficiência e emancipação pessoal. Enquanto a transfobia tiver o grau que tem em Portugal, e enquanto deixarmos aos médicos o encaixar das pessoas, estamos a contribuir para gerações e gerações de trans envergonhados de si próprios, que se vêem como pessoas doentes que foram "curadas" ou "erros da natureza" que foram "corrigidas", e, portanto, a favorecer mais trans envergonhados de si mesmos, escondidos e invisíveis (sem julgamento nenhum de quem se esconde - é o mesmo para a homofobia, falarmos de visibilidade e construirmos um movimento público não quer dizer que achemos que tod@s @s lgb se devam expor de cabeça à discriminação vigente), e já agora, para a não-existência a prazo de um movimento trans autónomo, com um discurso e uma auto-visão própria (que nunca será a dosmédicos), capaz de construir melhores vidas para trans nesta sociedade. Nós somos movimento social,a nós cabe-nos combater a discriminação, afirmar o valor e a existência e o orgulho (a não-vergonha) nas nossas identidades, e não querermos ser mais médicos do que os próprios médicos e menorizarmos ao lugar de "pacientes" todas as pessoas de um grupo oprimido: as que estão perdidas no mundo com a sua diferença e precisam de um apoio (que até pode vir de organizações trans, preferencialmente, e só nalguns casos de desiquilíbrio pessoal se justifica que fosse médico), e aquelas que não estão nada perdidas nem vivem mal o que são e sabem muito bem o que querem. Não somos médicos, somos activistas. O nosso dever não é classificar, é entender, explicar e emancipar. Os médicos não emancipam, diminuem as pessoas numa relação de poder em que eles sabem sempre melhor do que "o paciente". Não, não faz sentido o poder que os médicos têm sobre tantas vida, e em particular das pessoas trans. E creio mesmo que em todos os casos de pessoas não necessitadas de apoio psicológico, estas não deviam sequer ser confrontadas com um psi que pode fazer escolhas por elas - mas sim ter acesso ao tratamento hormonal e à cirurgia, e pronto, sem mais nada. As pessoas fazem as suas escolhas de vida e são responsáveis por elas.
8 - Essa posição é "extremista".Ora bem, "extrema" é a opressão que sofrem as identidades de género que não cabem na binomia homem/mulher, e "extremista" é a discriminação. Mas um discurso que hoje continue a precindir de afirmar as pessoas trans como responsáveis por si mesmas, e desnecessitadas de tutela médica e categorização de doentes, não conseguirá nada nem para daqui a 20 anos, sobretudo em termos de emancipação mental da própria comunidade trans.
O discurso activista tem de ser emancipatório e construtor da auto-estima, consciencialização e união das pessoas discriminadas. Se eu posso ir a uma loja de tatuagens fazer-me queimar com um ferro pelo corpo todo, porque não pode uma pessoa trans alterar o seu corpo apenas porque quer fazê-lo, porque pessoalmente necessita de fazê-lo? É menos do que eu? Tem menos capacidade de auto-determinação? É doente mental e deve ser protegida de si mesma? Isto não tem nada que ver com o facto óbvio de nos grupos socialmente muito discriminados ser habitual que muitos indivíduos necessitem de apoio psicológico - assim é, claro, no caso da sexualidade e da identidade de género fora da norma social - sobretudo nos seus processos de transição (descoberta de homossexualidade, transição corporal transexual, etc...).
Mas neste contexto o mais importante é trabalhar a auto-estima -o orgulho, se quiserem - colectivo e individual destas pessoas e grupos sociais - isto não é teoria inútil, é o que determina a utilidade da nossa prática hoje e, do futuro próximo ao longínquo, os resultados concretos do nosso activismo sobre género. As escolhas que fizermos quanto ao nosso discurso político sobre trans nos próximos anos podem, como demonstra este debate, ir num sentido ou no outro. A definição estrita de transexual indica de facto o desejo de um género a outro (M-F, F-M). As restantes realidades, que não têm o M ou o F como refentes serão outras coisas que não transexuais - intersexuais, transgénero, travestis, o que quisermos, mas a luta política essencial continua a ser a mesma, contra o binarismo de género que oprime quaisquer pessoas que não nasçam biológica e, em correspondência entre corpo e mente, psicologicamente M ou F, e pela união de tod@s estes/as "marginais de género" (atenção, quem marginaliza é a sociedade binómica, é nesse sentido que uso o termo).
Assumamo-nos então realmente como "marginais de género", como "gender queers", ou simplesmente como L, G, B, T, I, mulheres (não-submetidas à submissão do feminino ou ainda não-heterossexuais), homens (não-submetidos à obrigatoriedade do uso do seu poder e privilégio masculino, ou simplesmente não-heterossexuais), outros ainda - em suma, identidades e realidades pessoais que não encaixamos nem acreditamos nesta mentira simplificadora que nos está imposta, e portanto, identidades e realidades pessoais que são necessariamente identidades de resistência e de luta, quer o queiramos, quer não. Um dia, o mundo será nosso e seremos tod@s mais felizes . Em alternativa, continuaremos nesta idade média que nega a própria diversidade humana. A escolha é, parcialmente, nossa, e ao movimento lgbt (etc) português... coloca-se agora.
Rugido de Sérgio Vitorino
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