E então pensava chegar a uma cidade que já conhecia e ela troca-me as voltas. Pelo nível de repressão, muito superior ao do povo criativo que continua a chegar ilusionado a esta cidade pensando que tem um oásis e afinal é só para turista o oásis, e a realidade, se bem que oásis - Lisboa ao fundo - é sinal, e sente-se, de como a Europa - toda, cada vez mais toda - está difícil para o que quer que seja de política radical, e também cultura, imaginação, tudo o que seja espontâneo e humano. Ao mesmo tempo, torna-se mais desafiante, como quando me vejo a discutir com 15 mossos d'esquadra que insistem (fisicamente) que eu não tenho o direito de estar sentado no passeio de uma rua de barcelona, e eu a gritar-lhes não vos creio, não posso acreditar que haja lei que diga que não me posso sentar na rua, e eles a empurrarem-me, mas é como se me estivessem a mostrar a lei, porque o problema é que podiam mesmo mostrar-me a lei onde está escrito, porque está. E então entendo. O que resta de Barcelona e como estão a destruí-la, precisamente porque dela ainda resta potencial, e são pessoas e movidas, tantas, e são perseguidas, cada vez mais tanto. Amanhã vallcarca resiste à ordem de desalojamento do último de 5 ou 6 casas ocupadas que funcionavam como centros sociais e culturais do bairro. E no entanto parece que já temos de ir para casa - a lei só diz que não podemos ficar na rua, então só sobram sitios para quem pode pagar, conseguimos juntar quanto entre nós? - e de repente abre-se uma porta do raval, corre-se uma grade, e um colombiano (mto interessante) que estava connosco deixa de ser tímido e abre um sorriso e convida-nos a entrar em sua casa, e entramos surpresos e é uma festa, um espaço térreo, uma casita mas já foi um bar, com balcão e tudo, e dançamos, e rimos, e chegam mais e já somos uns quantos, e fazemos batucada e ainda aprendemos, os que queremos ou os que não bebemos demasiado ou os que estamos mais curiosos com o dono - ou simplesmente okupante - da "casa", alguma coisa sobre a colômbia, e sobre a barcelona que aluga armazéns de 2,30m como se fossem quartos ou mesmo casas (o preço sim), e que finalmente, para lá do mito de oásis que só ainda vai sendo porque ainda há o mito e porque ainda há gente que chega disposta a renová-lo, ainda que fora de tempo, alberga gente que vai fazendo oásis no meio da repressão europeia que é Barcelona, no meio da repressão de Barcelona que é toda ela Europa. E somos portugueses em Barcelona. E colombianos. E peruanos. E brasileiros, porque portugueses, e em Espanha isso equivale a desconfiança automática de sermos brasileiros, ou seja, de termos papéis falsos, e então não só nos sentimos discriminados como portugueses que somos como os brasileiros que não somos mas dos quais sentimos as dores e que por uma vez entendemos. E deixo de me dizer emigrante, porque um emigrante é uma pessoa sem documentos que foi ilegalizada por um Estado, e eu sou um privilegiado, e nem tive de crescer em Medellin, mas provavelmente se assim fosse seria melhor pessoa, ou mais centrado no que conta, veria de qualquer forma a vida de outros prismas, mais ou menos lúcidos, certamente mais crus, mais pragmáticos, menos pequena-burguesia (que é assim que se chama) europeia, aquela tão inconsequente que às vezes parece - e confunde-nos - quase radical, mas na verdade nada altera na relação de forças, porque é comprometida e dúbia, e não transforma. E entendo melhor como estamos mal na Europa que aí vem, não, que aqui está, mas também como não tenho nada de emigrante, porque um emigrante é uma pessoa sem papéis com o triplo da minha imaginação, e não é porque eu seja menos criativo. É que ainda não fui à Colômbia ter de sobreviver lá. Parece que os cartéis até são os bons da fita, e não é que sejam bons... mas sim, assim começamos a entender a complexidade do sítio onde caímos, e no entanto não é surpresa porque já éramos políticos antes, e limitamo-nos a continuarmos a sermo-nos nós mesmos e a tentar comunicar com isso que é tudo o que temos :), mas chega para sentirmos que estamos bem aqui e que os mossos são tontos, e que temos mais imaginação do que eles, e que Barcelona às vezes ainda é nossa, e sei que serei feliz aqui. E pronto, assim como quem não espera, estou no raval e conheço uma moça árabe chamada leila que é tradutora (de filmes porno), que me pergunta se não quero traduzir para ela, que toca clarinete e tem um piano e mora mesmo acima da minha rua (visca vallcarca, vallcarca, vallcarca!), e que tem um amigo que toca saxofone, e sabendo como já estamos todos comprometidos a pelo menos conhecermo-nos, e a facilidade com que nos conhecemos é a mesma com que o carro dos mossos desliza rua abaixo para ver se tem pretexto para estragar a noite a algum/a de nós. Mas hoje, não. :) sérgio (ontem, muito bêbedo, mas hoje isto parece-me estupidamente lúcido):)
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